Todo(s) ouvidos: 25 anos do Napster
Há 25 anos, o Napster transformou a forma como ouvimos, consumimos e experimentamos entretenimento, tornando-se um dos serviços de compartilhamento de música mais icônicos e disruptivos da internet
Criado em 1999 por Shawn Fanning, um estudante de 19 anos insatisfeito com o modelo de distribuição musical da indústria fonográfica, o Napster rapidamente se tornou um instrumento de transformação cultural.
A disponibilização de downloads gratuitos de músicas em MP3 não era uma novidade, mas os programas existentes naquele momento (IRC, Hotline e Usenet, por exemplo) não eram tão eficazes nem fáceis de mansear como o software criado principalmente por Fanning, programador autodidata.
Menos de um ano após o lançamento, o Napster já era um sucesso: registrava cerca de 14 mil músicas baixadas por minuto e contava com aproximadamente 75 milhões de usuários registrados (RAYBURN, 2001).
Sua base de usuários crescia cerca de 25% ao dia. Naquela época, o termo mais pesquisado nos sites de busca era “MP3” (WITT, 2016), e o programa de compartilhamento chegou a entrar para o Guinness Book of World Records como o empreendimento com o crescimento mais rápido de todos os tempos — até aquele momento (BRUENGER, 2016).
Em outubro de 2000, Fanning estampou uma icônica capa da revista Time, que considerou seu programa uma das maiores inovações da Internet, ao lado do e-mail e das mensagens instantâneas.
O programa transformou a forma de circulação e compartilhamento da música nos anos 2000 sobretudo por três aspectos: desafiava as normas de direitos autorais, ao promover abertamente a pirataria; apresentava um jovem que enfrentava o domínio da indústria musical; e incentivava um senso de coletividade e solidariedade entre seus usuários.
A mensagem era: a música é livre! Acabou a obrigação financeira para acessar a música. O usuário apenas precisava se cadastrar, instalar o aplicativo do Napster no computador, buscar a música desejada e baixá-la. Não era mais necessário ir a uma loja física ou comprar um álbum inteiro apenas para ouvir uma ou duas faixas de um artista. E claro, não havia mais a necessidade de pagar os elevados preços impostos pelo mercado.
Embora a inovação tenha proporcionado a milhares de usuários de música na internet maior economia e autonomia no consumo, o Napster teve uma curta vida útil em seu formato de programa de downloads considerados à margem da lei. Em 2001, após uma série de processos movidos pelas grandes gravadoras e pela Recording Industry Association of America (RIAA), que alegavam que o serviço facilitava a violação de direitos autorais, uma ordem judicial determinou que o Napster deveria interromper suas atividades.
No entanto, o breve período de atividade foi suficiente para abalar o status quo da indústria fonográfica. A popularidade do programa e sua capacidade de integrar e expressar insatisfações de consumidores em relação à indústria musical foram suficientes para forçar uma reinvenção na distribuição do entretenimento.
Compartilhando sensos de justiça
As mudanças trazidas pelo Napster não foram apenas de ordem econômica, embora esse aspecto seja crucial para entender o impacto disruptivo do serviço.
O software ajudou a formar novas percepções sobre o que é (in)tolerável no comportamento da indústria da música e fortaleceu sensos de justiça entre os consumidores, como escrevi em minha tese de doutorado sobre o tema***.
A plataforma amplificou a voz a um público que via desvantagens no modelo tradicional de distribuição da música. Os preços elevados, a impossibilidade de conhecer artistas sem um comprometimento financeiro prévio e a falta de opções de compra “à la carte” deixaram de ser apenas desconfortos e se tornaram protestos.
A consolidação da percepção coletiva sobre a falta de atenção da indústria em relação ao seu público-alvo foi bem-sucedida. Noções e termos relacionados à “ganância” eram amplamente difundidos para desaprovar e contestar métodos e ações do setor fonográfico.
Piadas, sátiras, sarcasmo e ironias se tornaram formas comuns para deslegitimar as práticas legais destinadas a combater a pirataria. Essas expressões têm relevância porque funcionam como instrumentos de atração e carisma, reforçando a moral dos críticos, ao mesmo tempo em que deslegitimam e desmoralizam a indústria do entretenimento e o Estado e suas leis.
Mas os agentes do status quo revidaram. Nos anos 2000, comparações entre pirataria e crimes como furto e roubo foram frequentes. Em 2007 a gravadora Universal Music Group promoveu uma campanha de publicidade anti-pirataria que envolvia imagens de partes desmembradas do corpo humano — como olhos, dedos, e orelhas — sugerindo que o download irregular de músicas suscitava na perda de partes dos corpos de músicos (MASNICK, 2015).
Essas comparações eram dirigidas não apenas a programadores e softwares de compartilhamento, mas também aos usuários desses serviços. Além de não oferecer condições de consumo atraentes para muitos usuários, organizações representativas de estúdios e gravadoras passaram a tratar o público — e não apenas os programadores — como moralmente suspeitos, rotulando-os de ladrões de dinheiro, carreiras e sonhos de artistas.
É possível entender essa disputa narrativa como um dos principais coveiros do formato tradicional de distribuição de música.
Não foram apenas o Napster, como ferramenta de compartilhamento, nem os altos preços e as restrições de acesso que provocaram essa transformação. Emoções, sentimentos, percepções e interpretações do público consumidor — que o Napster, como ferramenta sociotécnica, conseguiu amplificar — desempenharam um papel determinante na necessidade de reestruturar o mercado.
Legados do Napster
Mas de quais transformações estamos falando? Em última análise, as mudanças ocorridas nos últimos 25 anos podem ser entendidas como uma reavaliação da indústria em resposta às percepções e interesses levantados pela pirataria e seus agentes.
Como resultado, houve um esforço significativo em confluir lógicas coletivas e lógicas corporativas em um mesmo espaço a fim de reconquistar consumidores e direcioná-los de volta para o mercado legalizado do entretenimento.
Na prática, o legado do Napster pode ser percebido em diversas de nossas relações cotidianas com o consumo de música, mas destaco uma herança marcada por três movimentos: a consistente presença da música no espaço online; o acesso mais barato em comparação a décadas passadas; e o surgimento dos serviços de streaming.
Talvez a resposta mais notável da indústria neste momento seja o desenvolvimento e aprimoramento de plataformas de streaming, tendo o Spotify como o principal exemplo, mas também o próprio Napster, que hoje ainda existe como um serviço de streaming pago.
É interessante a dinâmica de percepções sobre justiça e economia que os anos 2000 despertaram. Para ter acesso às diversas produções culturais mundiais, basta uma compreesão popular: faça melhor que eu pago.
Mesmo envoltas por regulações de propriedade intelectual, as plataformas de streaming assimilam alguns dos princípios de justiça promovidos pela pirataria — pelo menos no que diz respeito aos usuários, já que os artistas continuam sendo remunerados de forma confusa, pra não dizer injusta.
Algumas dessas similaridades entre plataformas de streaming e softwares como o Napster são o (relativo) baixo custo do acesso à música (pelo menos em comparação aos CDs e LPs), o que dá a sensação de “gratuidade”; a praticidade destes serviços — basta assinar e já é possível ter acesso a um vasto universo de música; e a maior interatividade das plataformas com o público, propiciada (e estimulada) pelos algoritmos dos serviços de streaming.
Essas características não estão limitadas a seus aspectos técnicos; descendem de uma cadeia de eventos em que percepções, valores e emoções foram (e são) constantemente negociados.
É pertinente pensarmos que a indústria musical de hoje é produzida a partir de relações coprodutivas entre pirataria e sistemas orientados por direitos autorais. A pirataria segue às margens do universo legalizado, mas a habita de modo central e constante.
Nesse diálogo, os sistemas de direitos autorais, por sua vez, precisam continuamento se adaptar a essa dinâmica, buscando formas de integrar e regular essas práticas em um cenário em constante evolução. A interdependência entre esses dois elementos destaca a complexidade do mercado atual e a necessidade de atualizações de abordagens para equilibrar acesso, proteção e remuneração no setor musical.
A pirataria, longe de ser uma força periférica, desempenha um papel crucial no setor musical, moldando não apenas o consumo, mas também a forma como as estratégias comerciais são elaboradas.
É interessante percebermos como as categorias do legal e ilegal não são completamente dissociadas quando tratamos de indústria fonográfica. Pelo contrário, estão em constante diálogo traçando e redefinindo fronteiras sociais do aceitável e do inaceitável. E se hoje muitos desfrutam de músicas através de plataformas de streaming legalizadas, não há espaço para pensar que nos distanciamos tanto da pirataria.
Muitos dos princípios, demandas e inovações de um quarto de século atrás continuam presentes tanto em tecnologias mainstream, quanto em plataformas como o Streamio e demais sobreviventes de buscas de torrents — mas isso é papo para outro texto.
*Este texto foi origialmente publicado junto ao Baixa Cultura no dia 09/08/2024.
Referências:
BRUENGER, David. 2016. Making Money, Making Music: History and Core Concepts. University of California Press.
MASNICK, Mike. 2015. Universal Music’s Anti-Piracy Ads Even Crazier Than You Can Imagine. In.: TechDirt. Disponível em: Acesso em: 16, set, 2019.
***SOILO, Andressa Nunes. Habitando a distribuição do entretenimento: regime de propriedade intelectual, tecnologia streaming e a “pirataria” digital em coautoria. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2019.