O Streaming e o fim da História

Andressa Nunes Soilo
4 min readDec 22, 2022

Pesquiso espaços de compartilhamento de torrents e de streamings considerados “piratas” há mais de 5 anos, período em que plataformas como Netflix e Spotify viviam seu clímax em popularidade, tornando o ambiente do entretenimento deveras convidativo a muitos consumidores de TV por assinatura e usuários de mp4 e iTunes.

Com o sucesso das plataformas, um rearranjo no modo de consumir, perceber e distribuir filmes e músicas foi estabelecido na vida social de muitos. Todos os outros serviços dentro da legalidade foram perdendo espaço. Netflix e Spotify ofereciam, de modo geral, praticidade, bom preço e catálogo, o que eram intensos atrativos.

O cenário “pirata” também sentiu a pancada da chegada dos novos serviços. Quem agora compartilharia conteúdo torrent? Quem continuaria a abraçar a ideia de que a cultura é livre? Quem ainda teria vontade de preparar e organizar tal nicho? E aí então a palavra “fim” ressurge feito um semi-monólogo.

Era o fim. Tenho certeza que já falaram isso para discos de vinil, CDs, fitas cassetes e rádios. Todos já ouviram “é o fim!”. Uma nova tecnologia surge e então toda nossa forma de existir como seres que precisam de entretenimento e qualidade de vida é aniquilada.

Recentemente, o Legendas.TV, um dos maiores repositórios de legendas “piratas” do Brasil (considerado “o maior para muitos”) anunciou seu encerramento. Li e escutei muito o discurso, ou a sensação afetiva, de que aquilo era o fim de mais um ramo da “pirataria”.

O streaming está matando o formato de consumo livre a que estávamos acostumados antes? Porque hoje em dia alguém precisaria de legendas? Filmes e séries da Netflix já os disponibilizam. É o fim da história.

Esse breve contexto sobre o vocal desfecho cada vez mais iminente dos componentes da “pirataria” foi só pra dizer que a cada vez que lia ou escutava algo relacionado ao encerramento desse modo de acesso livre, eu lembrava de Francis Fukuyama.

Francis Fukuyama

Fukuyama foi um político e economista estadunidense que produziu suas mais famosas ideias no início da década de 1990. Um de seus livros mais famosos “O fim da História e o último homem” (1992) me fez refletir sobre ruídos e euforias acerca do fim das unidades que fazem a “pirataria” existir. E é aqui que quero fazer meu ponto.

Em “O fim da História e o último homem” (1992), Fukuyama interpreta a queda do muro de Berlin como triunfo da democracia liberal. A URSS (União das Repúblicas Socialistas Sov­­­­­­­­­­­­­­­iéticas) havia perdido a Guerra Fria.

Esse cenário acaba por sugerir ao autor uma ideia interessante: que o enorme enfraquecimento do socialismo sinalizava uma linha histórico-evolutiva de que a democracia liberal seria a mais avançada forma de vivermos em sociedade.

Era como se o fim dos anos 1980 e início dos anos 1990 representassem o fim de ideias consideradas subversivas, insubmissas e transformadoras, ameaçadoras e debilitadas às potências neoliberais.

De acordo com as profetizações de Fuyuma, países considerados autoritários em breve se tornariam uma democracia capitalista acompanhada de oportunidades e igualdades. No entanto, a história é um devir. Não há determinado momento no tempo que cristalize como viveremos.

A imposição da ideologia estadunidense como projeto hegemônico, assim como as teorias de Fukuyama sobre economia neoliberal universalizante, me fazem lembrar muito o “fim” da pirataria oportunizada pelo streaming.

Há um agente hegemônico, forte, agressivo no mercado. Há ameaça. Pode haver a perda de força de pensamentos socialistas cessados por tal guerra, mas nunca a eliminação das ideias socialistas.

Posso dar exemplos de que a “pirataria” ainda vive. Não vive com toda sua polpa, mas vive se atualizando. Se Sinatra não é hoje baixado em um torrent, certamente músicas de Cabo Verde e de outros países não acessíveis no Brasil são “pirateados”. Se um filme do Marrocos e suas legendas não estão disponíveis, a “pirataria” é ativada. Mesmo quando séries da Netflix são apenas exibidas em outros países, o VPN e a “pirataria” resolvem essas questões. O próprio Legendas.TV anunciou que seus grupos iriam dispoibilizar seu material.

O fim da potência da “pirataria”, quando fazia as vezes de suprir a demanda de uma indústria do entretenimento precária, foi atualizado. Os players foram se reordenados dentro de um jogo cada vez mais neoliberal. Esse é o fim? Não. É o fim de um ciclo.

Vivemos ciclos, se há fim, há fim de ciclos. Não há fim quando se há ideias — o que há, sim, são rearranjos e atualizações dos modos de viver, de consumir, de se integrar.

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Andressa Nunes Soilo

Social anthropologist researching digital piracy and streaming technology. E-mail: andressansoilo@outlook.com