O digital como parte da revolta em Hong Kong

Andressa Nunes Soilo
9 min readOct 17, 2019

Por Andressa Soilo

A “entrega” da (semi)autonomia e a frustração de Hong Kong

Quando Carrie Lam, atual Chefe do Executivo de Hong Kong, anunciou em fevereiro de 2019 projeto de lei de extradição que concedia ao governante o poder de enviar fugitivos para serem julgados em outras jurisdições, como a China e Taiwan, um novo episódio da revolta popular de Hong Kong pró-democracia era instaurado.

De acordo com autoridades de Hong Kong, o projeto da lei de extradição foi desencadeado a partir do caso de Chang Tong-kai, um homem honconguês acusado de roubo, lavagem de dinheiro e do homicídio de sua namorada Poon Hiu-wing, enquanto estavam em Taiwan em fevereiro de 2018. Apesar de confessar os crimes após retornar a Hong Kong, Chan Tong-kai não pôde ser punido pelo crime de homicídio, pois os tribunais locais não têm jurisdição para julgar assassinatos ocorridos em Taiwan, nem acordos de extradição junto a este país.

O projeto, recebido por parcela da população como medida influenciada por autoridades de Pequim, viabilizaria, assim, o acordo de extradição com outros governos que poderiam processar honcongueses suspeitos de executarem crimes em seu território. Apesar de manter o acordo legal de entrega de pessoas suspeitas ou condenadas junto a 20 países (incluindo os Estados Unidos), a inserção da China neste rol trouxe questões especialmente delicadas às aspirações e noções culturais próprias de Hong Kong.

Sobretudo, um acordo de extradição com a China continental poderia ocasionar repressões e perseguições políticas daqueles críticos ao regime chinês, sufocando a liberdade de expressão que os habitantes da região administrativa tentam manter — diferentemente do resto da China, Hong Kong dispõe de direitos de imprensa, associação e expressão. O temor da possível extradição ao sistema judiciário chinês representa não apenas o medo do enfrentamento de possíveis julgamentos arbitrários e de condenações a penas de morte, também representa uma inquietação frente à perda de uma autonomia já vulnerável — o detrimento da política “um país, dois sistemas”.

O receio de viver em um contexto incerto e dominado pela China é sintomático da importância dos protestos de parcela da sociedade honconguesa: de acordo com pesquisa realizada pela Universidade de Hong Kong [1] , 46% da população expressou inclinação para emigrar após o anúncio do projeto de extradição por Carrie Lam.

Com tal projeto, o terreno para os protestos restava pronto (e fértil), e vários manifestantes contrários ao plano de Lam tomaram as ruas para sobrepor a integridade de sua liberdade de expressão à lacuna de leis sobre competências jurisdicionais. Em abril, uma das maiores manifestações do território, com aproximadamente 20 mil pessoas, pedia pacificamente a retirada do projeto de extradição da pauta legal e política. Em 9 de junho, novamente milhares de pessoas saíram às ruas de modo pacífico para protestar contra o projeto. Em 12 de junho as manifestações perderam sua característica tranquila quando do uso de spray de pimenta pela polícia, assim como o uso de cassetetes e de 150 cartuchos de gás lacrimogêneo.

Ampliação das exigências pró-democracia

O foco inicial na legislação local foi apenas o estopim de uma série de novos protestos e exigências dos manifestantes: em setembro, o projeto sobre extradição foi retirado, mas muitos honcongueses prosseguiram com seus atos incorporando outras reivindicações de cunho democrático em suas manifestações.

A irritação com a polícia, a desigualdade social, as percepções de vulnerabilidade de uma autonomia já relativa, e as suspeitas não recentes de influência e controle da China nas decisões de autoridades do território honconguês, fizeram com que os protestos tivessem novas urgências e novos métodos de protestar.

Como aponta Rosana Pinheiro-Machado [2] , as principais exigências desse movimento são: “1) revogar a lei da extradição, que previa extraditar fugitivos para territórios onde não se tinha acordo; 2) investigar excessos policiais por uma comissão independente; 3) retirar a caracterização dos protestos de riot (motim); 4) conceder anistia aos manifestantes presos; 5) alcançar sufrágio universal para o chefe do executivo e membros do legislativo”.

São, sobretudo, exigências de reforço e de composição de moldes democráticos em um espaço que se quer mais autônomo em sua semi-autonomia. A proteção das liberdades civis e da especificidade política honconguesa constituem, entre outros fatores, o combustível para a busca da solidez e do reconhecimento de uma identidade social, cultural, política própria do território.

Nos últimos quatro meses os protestos fartos de manifestantes lutando pelo reforço de sua singularidade frente à China continental e pela democracia foram noticiados por veículos midiáticos, noticiados não apenas como violentos, mas como um dos maiores desafios de Xi Jinping, presidente chinês[3]. Apesar de Xi proferir discursos também violentos sobre uma possível divisão da China — o governante disse que qualquer pessoa que tentar fragmentar o território chinês acabará com seus corpos esmagados e seus ossos quebrados — as manifestações perseveram, entoando palavras de liberdade a Hong Kong.

A busca por um espaço mais democrático é permeada por repertórios de resistência e luta, tais como: greves; provocação de fogo; quebra de vidros; uso de máscaras (cirúrgicas ou não) com e sem mensagens contestatórias; expressões artísticas de escrita pichação de símbolos e palavras de protesto; exposição da mão levantada mostrando os cinco dedos que representam as cinco demandas; cantos; usos de coquetel Molotov; ocultação de câmeras de vigilância; e usos de guardachuvas. Mas também é envolto em usos políticos de ferramentas digitais.

Armas digitais

Os recursos digitais possibilitados são cada vez mais utilizados, tanto por governos quanto por manifestantes, para limitar ou ampliar as vozes pró-democracia. Um dos casos mais emblemáticos dos usos de tais recursos se deu com a Primavera Árabe no final de 2010, quando diversos protestos eclodiram em países do norte da África e do Oriente Médio contra o alto nível de desemprego, corrupção, e pobreza em contextos políticos repressivos.

Muitas revoltas eram filmadas e publicados na internet tendo, inclusive, suas palavras de protesto traduzidas para o inglês e para o francês a fim de expandirem internacionalmente o movimento. No Egito, ao perceber a crescente mobilização política por meio da internet, o então presidente Mubarak tentou bloquear o acesso online no país. Tal medida se mostrou ineficaz, pois o site Google, em parceria com a SayNow e com o Twitter, elaborou o serviço speak2tweet que permitia que os egípcios tuitassem (utilizassem o Twitter) mesmo sem acesso à internet: o serviço gravava as mensagens deixadas na caixa postal de determinados telefones internacionais e postava o conteúdo no twitter com a hashtag #egypt conjuntamente com um link para o áudio das mensagens [4] .

Os usos políticos de tecnologias digitais junto a protestos de pequena ou grande escala é um fenômeno recorrente nos últimos anos. Aplicativos, serviços de mensagens instantâneas, mídias sociais, entre outros formatos de compartilhamento do cotidiano, habitam não somente esferas da vida privada, mas também ocupam espaços públicos e influenciam os modos de viver de populações e governos. Com 80% de Hong Kong conectada à internet, um dos maiores percentuais de penetração da internet a nível mundial — de acordo com o censo Thematic Household Survey Report №67 — Information technology usage and penetration[5] — não é difícil vislumbrar as mediações e colaborações que as tecnologias digitais podem desempenhar junto aos gerenciamentos de vidas no contexto conflituoso honconguês.

Organizados de modo descentralizado, os manifestantes reordenam os usos das tecnologias de modo a tornarem estas um dos meios mais eficazes na produção de elos entre aqueles que protestam. Elos estreitados a partir não apenas da causa democrática, mas também a partir da exposição da dor, das relações de poder em protestos e das necessidades cotidianas dos manifestantes.

Os atos em Hong Kong contaram com diversos meios digitais para exporem os protestos, rastrear a polícia, organizar manifestações e até mesmo “cobrir” câmeras de vigilância — manifestantes miraram lasers em tais máquinas para que não fizessem o reconhecimento facial de quem protestava.

Inicialmente o serviço de mensagens instantâneas Telegram e o site de fóruns LIHGK protagonizaram tal processo. Métodos e informações para a manutenção dos protestos eram discutidos por meio de tais serviços, especialmente a necessidade de suprimentos durante o embate. Quando um manifestante necessitava de água, comida ou outros materiais, era por meio de tais serviços digitais que a urgência podia ser publicizada e suprida com a ajuda da rede composta por outros manifestantes. Tais tecnologias ajudavam formando uma rede de suporte e de organização.

No entanto, rapidamente alguns sinais de que o acesso à determinados espaços digitais, e até mesmo à internet, foram expressados de modo velado e aberto pelas autoridades pró-Pequim.

O Telegram sofreu um ataque DDoS — uma prática que sobrecarrega o serviço paralisando suas atividades –, ataque este associado ao governo chinês por Pavel Durov, o CEO do Telegram. Já em carta aberta do legislador pró-Pequim Junius Ho Kwan-yiu pediu a Lam que bloqueasse o Telegram e o LIHKG com o discurso de que tal medida ajudaria a impedir a violência. E, em pronunciamento, um funcionário pró-Pequim afirmou que o Conselho Executivo não descartaria a proibição da internet no território.

Ainda que o Telegram sobreviva em Hong Kong, não por acaso novas estratégias e resistências políticas de protesto tomaram novos (e velhos) contornos. Assim como em 2014, quando as ameaças à interrupção da rede se faziam temerárias, os manifestantes passaram a usar tecnologias dependentes do Bluetooth que permitem aos usuários se comunicarem por meio de uma rede de dispositivos conectados localmente e não pela conexão à internet — tal método de conectividade é também chamada de “peer-to-peer network”. Sem a necessidade da conexão à internet, tal tecnologia se torna mais árdua de ser rastreada pelas autoridades.

O Bridgefy, baseado em Bluetooth, é um dos mais populares aplicativos usados em Hong Kong. De acordo com a empresa Apptopia, seus downloads tiveram um aumento de 4.000% entre julho e agosto deste ano.

Destaco também a importância do aplicativo HKmap.live como instrumento tecnológico de resistência. O aplicativo criado pela Apple este ano, basicamente, rastreava a localização de policiais e de protestos, assim como permitia a geração de relatórios e o mapeamento de postos de controle e de protestos o que de acordo com seus desenvolvedores objetivava somente auxiliar os moradores a evitarem ruas tomadas por protestos. Contudo, o HKmap foi amplamente utilizado por manifestantes como ferramenta de conhecimento e de luta, pois contribuía alertando os honcongueses sobre o paradeiro dos policiais, oportunizando o reforço de expressões de protesto em pontos livres de vigilância.

A Apple sofreu severas críticas por disponibilizar tal instrumento que, de acordo com autoridades chinesas, auxiliava na prática de atos violentos. Dias depois a empresa retirou o aplicativo de suas lojas virtuais com a justificativa de que tal mapa estaria ameaçando a segurança pública. Medida que também colaborou com a permanência dos negócios da multinacional na complexa e competitiva China — a Huawei agradece a controvérsia com Hong Kong.

As tecnologias digitais como componentes de estratégias nos conflitos em Hong Kong são diversas. Há também a transmissão ao vivo de marchas e disputas com a polícia através da tecnologia streaming, o que acaba, em alguns casos, por aproximar (emocionalmente, culturalmente, ideologicamente) aqueles que assistem dos que protestam — é noticiado que muitos dos manifestantes assistem a vídeos streaming durante os protestos, para se informar sobre as manifestações em geral, e/ou sobre o que está acontecendo em outros pontos de reivindicações.

Com Hong Kong, assim como junto a outros protestos que mobilizam nações e territórios, é possível pensar que as tecnologias desempenham um papel fundamental na produção de protestos e de resistências, empoderando os considerados mais fracos das relações de poder, e promovendo o crescimento de debates na política.

Por fim, penso ser importante destacar que o arranjo tecnológico junto a protestos de grande escala oportunizam a produção e a difusão de conteúdo informativo e comunicativo; a possibilidade de dissociação de circuitos tradicionais; a produção de novas subjetividades; o conhecimento (e participação) internacional; a oportunidade de trocas de percepções e informações; e a possibilidade de produção de novos universos simbólicos.

[1] O estudo se chama: “Press Release: Public Opinion Poll on the ‘Fugitive Offenders Ordinance’ Amendment”e pode ser acessado através do seguinte link:<https://www.hkupop.hku.hk/english/report/singming_extradition_bill/>

[2] PINHEIRO-MACHADO, 2019. A revolta do guarda-chuva de hong kong nos ensina como protestar. In.: The Intercept Brasil, 20, ago, 2019. Disponível em: < https://theintercept.com/2019/08/19/revolta-do-guarda-chuva-hong-kong-protestos-china/>

[3] THE GUARDIAN, 2019. Hong Kong protests are at ‘life-threatening level’, say police. In.: The Guardian, 14, out, 2019. Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/2019/oct/14/threatening-china-will-end-in-crushed-bodies-says-xijinping-amid-hong-kong-protests>

[4] As mensagens podem ser acessadas através deste link:<https://twitter.com/speak2tweet>

[5] Thematic Household Survey Report №67 — Information technology usage and penetration. In.: Census and Statistics Department Hong Kong Special Administrative Region, 2019. Disponível em: <https://www.statistics.gov.hk/pub/B11302672019XXXXB0100.pdf>

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Andressa Nunes Soilo

Social anthropologist researching digital piracy and streaming technology. E-mail: andressansoilo@outlook.com