Mods e a incorporação de percepções brasileiras em games

Andressa Nunes Soilo
11 min readJun 24, 2020

Por Andressa Soilo

Photo by Adam Valstar on Unsplash

Muitos dos games populares entre jogadores brasileiros são produzidos por empresas europeias, asiáticas e norte americanas. Os ambientes, as músicas, os idiomas e os personagens que compõem esses jogos são, em grande medida, reproduções de percepções de desenvolvedores localizados em contextos específicos, e muitas vezes alheios aos nossos. Não raro os jogos são ambientados em locais como Los Angeles, Miami, Hollywood, ou em algum lugar de clima muito frio. As comunicações se dão, principalmente, em língua inglesa, assim como os diálogos e as músicas. E os personagens transmitem gestos, expressões faciais e identidades visuais não tão familiares ao público brasileiro.

O cenário envolvente dos games atravessados por estilos internacionais mobiliza criatividades, emoções, e questionamentos sobre pertencimento entre alguns desenvolvedores no Brasil. De modo mais consistente, desde meados dos anos 2000 estes produtores de novas experiências praticam a adaptação de aspectos domésticos ao enredo de jogos com características estrangeiras.

Tal exercício de sobreposições de visões de mundo geralmente ocorre de dois modos: o desenvolvedor cria mods (modifications) que expressam suas sensibilidades culturais em jogos originais; ou o desenvolvedor cria um jogo novo, conferindo atributos de sua realidade, mas baseando-se em um jogo original. Semelhante às dinâmicas da colagem, os arranjos de integração de elementos familiares em produções internacionais podem ser percebidos como um processo de refinamento identitário, de absorção de vivências, emoções e de percepções sobre o mundo.

Este artigo tem como objetivo lançar algumas pistas sobre o que motiva desenvolvedores de mods e de games a dialogarem com jogos internacionais a partir de seus códigos culturais familiares. Para buscar compreender tal disposição, foram entrevistados três desenvolvedores: Allan Jefferson, o desenvolvedor do “Bomba Patch”, Rafael PMMODS, criador do PMMODS e Leonardo Henrique, produtor do game “Destinatário Ausente”. Estes três desenvolvedores compartilham a dedicação de aproximar ambientes de jogos de videogame às experiências e percepções próprias e de parcela de jogadores brasileiros.

A partir dos relatos destes três criadores é possível identificar razões heterogêneas para a produção dos mods e do game. Allan Jefferson diz que passou a se dedicar a introduzir elementos familiares ao contexto do futebol brasileiro junto ao Winning Eleven em razão de sua “paixão nacional”, e pela percepção de “falta” que tinha sobre os jogos de tal gênero. A “falta” decorria da ausência de atributos futebolísticos mais próximos dos jogadores de campeonatos brasileiros.

Rafael PMMODS, como assim é conhecido, relata que a ideia de criar mods com trajes de policiais estaduais e federais para o GTA foi estimulada por seu desejo em se tornar policial, e pela vontade de alterar narrativas de jogos.

Já Leonardo Henrique criou o jogo “Destinatário Ausente” em que o protagonista é Gerson Pontes, um carteiro caracterizado com o uniforme dos Correios que tem como objetivo entregar suas encomendas a tempo e superar adversidades no caminho. O jogo foi criado com a intenção de ser um “jogo meme”, um game paródia de Death Stranding.

Os motivos para a produção dos mods e do game são variados. Paixão por um esporte, projetos pessoais, humor. Mas estes três exemplos também compartilham outra razão em comum: a questão do pertencimento. Fazer o time do coração pertencer ao mundo dos jogos de videogame; fazer um sonho ser traduzido em personagens digitais; adicionar novos papéis aos protagonistas e fazer personagens do mundo do trabalho se adaptarem à narrativa de jogos de contextos distópicos, são expressões de negociações de pertencimento.

Bomba Patch

Há 13 anos incluindo jogadores, times, campeonatos e estádios no Winning Eleven, Allan Jefferson é considerado um “mito” por quem gosta de jogar games de futebol. Torcedor do Mogi Mirim, Allan Jefferson conta que o futebol sempre foi parte integrante de sua vida. Desde sua infância, o desenvolvedor alternava sua relação com o esporte indo a estádios, assistindo a jogos e jogando Winning Eleven no PS2. De acordo com o programador, sua “paixão nacional” e sua noção de “falta” de pertencimento ao game o fizeram criar, em 2007, o Bomba Patch, uma versão modificada do Winning Eleven.

No lugar da proposta original da produtora Kojima, de apresentar um time do Brasil com uniforme genérico (sem mesmo o escudo original da CBF), o Bomba Patch dava vida digital à pluralidade de times, jogadores e campeonatos em âmbito nacional. O diferencial atrativo do mod se localizava na incorporação de características do futebol brasileiro ao formato do jogo original: uniformes idênticos aos dos times, cortes de cabelo correspondentes aos dos jogadores de futebol, escalação atualizada, gritos da torcida, narrações da TV nacional, músicas tema.

Graças à “Opção Editar” que tem nos jogos, eu editava jogador por jogador, time por time. No começo, eu fazia uma tabelinha, na qual vinha escrito o que cada time era. Por exemplo, o Brasil era o São Paulo, Alemanha o Corinthians. Não tinha como editar nomes e times. Somente jogadores. Aí você escolhia o Brasil e vinha lá os jogadores do SP. Editava todos os times desta forma e fazíamos campeonatos de videogame. Cada pessoa era um time do Brasileirão.

Com as primeiras edições, foi promovido um campeonato entre os amigos de Allan Jefferson. Como o desenvolvedor conta, no primeiro torneio não havia uma premiação: “O pessoal ficou perguntando o que iriam ganhar, e na época minha mãe fazia Bomba de chocolate pra vender, aí peguei na cozinha algumas unidades e pronto, o campeão ganharia Bomba de Chocolate”. Nos torneios seguintes os prêmios foram outros, mas os jogadores ainda queriam e falavam sobre a bomba de chocolate. Daí o nome do mod.

Com o tempo, o Bomba Patch circunscrito a uma dimensão local e delimitado aos amigos de Allan Jefferson, se encontrava na internet. Antes da aceitação do público, o desenvolvedor relata que grupos de edições caçoavam do amadorismo da produção do mod, mas que sua persistência e suas atualizações em tempo real foram fundamentais para a popularidade do jogo. Em pouco tempo, Bomba Patch era não somente estimado na internet, mas vendido em lojas de games e camelôs.

Por ser uma versão difundida pela internet e amplamente oferecida por camelôs ao longo dos anos, Allan Jefferson diz que não é possível ter uma noção precisa de quantas pessoas jogaram ou compraram seu mod até o momento, mas suspeita que milhões. Em todas as locadoras e bancas de camelôs que visitava, mesmo sem se identificar, os vendedores diziam que o Bomba Patch era o jogo mais vendido, e que a chegada das atualizações ajudava os comerciantes a vender mais.

A popularidade do mod ao longo dos anos não trouxe somente prestígio à Allan Jefferson no mundo dos mods e dos games de futebol no Brasil, também lhe trouxe realizações pessoais no campo das emoções. O desenvolvedor recebe feedbacks que o motivam a continuar com as atualizações, histórias de pessoas que jogavam com seus pais enquanto estes eram vivos, histórias de camelôs que alimentavam sua família com o dinheiro das vendas do Bomba Patch, e manifestações de pessoas que diziam não gostar de futebol em games antes do mod.

O sucesso do Bomba Patch está em sua capacidade de aproximar vivências, emoções e percepções nacionais de futebol em games comumente concentrados em destacar a experiência europeia do esporte. O prazer de estar imerso em um jogo que remete a imagens, sons, cenários e personagens habituais aos sentidos é diferente do engajamento a jogos permeados por elementos quase estéreis.

Nas redes sociais do mod é possível perceber em comentários de jogadores a predileção de jogarem com os times que torcem, com os esportistas que admiram, e de participarem de rivalidades clássicas entre equipes.

A familiaridade envolve mais do que habitualidades, envolve emoção. Identificar gritos de “vai, mengo” no jogo digital suscita mais intimidade do que narrações em língua inglesa em um jogo do Manchester United. Mas é mais do que isso. Quem joga quer jogar com a paixão que sente pelo seu time do coração, que jogar com todo o conhecimento que tem sobre sua equipe, com toda a vontade de vencer seus maiores rivais, com toda sua lealdade. Quem joga quer jogar com uma realidade que lhe diz respeito, e não em um ambiente estrangeiro que nunca teve contato.

A “paixão nacional” a que Allan Jefferson se refere como motivadora da criação do Bomba Patch levou aos games a paixão de diversos adoradores de futebol. É uma motivação baseada em levar pertencimento, lealdade e emoção à experiência dos jogadores.

PMMODS

Assim como Allan Jefferson, Rafael PMMODS também atua criando mods há aproximadamente 13 anos. Morador de Guaratuba/PR, o desenvolvedor relata que, por muitos anos, queria se tornar policial, mas devido à demora da abertura do concurso em seu Estado, não teve a oportunidade de tentar o ofício. Os mods de policiais surgiram, em parte, em razão desse sonho, e em parte da ausência de jogos que apresentassem a figura do policial como protagonista.

De acordo com o desenvolvedor, à época de seu interesse pelos mods policiais, os jogos disponíveis no mercado geralmente apresentavam como protagonistas personagens considerados fora-da-lei. Participações em gangues, atropelamentos, tráfico e mortes faziam parte da experiência dos personagens conduzidos pelos jogadores. Com esse cenário, os mods policiais são criados, também, para alterar tal ordem moral do jogo. Conforme Rafael PMMODS, tornar policiais protagonistas é como “virar uma camisa ao avesso”, é “ver o outro lado da história do jogo”.

O GTA é o jogo que o desenvolvedor se dedica a personalizar. De acordo com seu relato, o game original chega aos jogadores com base na polícia norte-americana, não apenas em sua identidade visual, mas também de acordo com as leis e procedimentos policiais estadunidenses. Os mods, assim, também situam contextos nacionais em regramentos estrangeiros: a polícia brasileira estaria sob competência das diretrizes e leis norte-americanas.

Como em uma colagem, os personagens com referências visuais de agentes brasileiros são respaldados por leis que, na visão de Rafael PMMODS, são mais interessantes de serem jogadas. O mod, assim, também adapta o familiar a contextos estrangeiros preferíveis a quem cria as modificações.

Rafael PMMODS diz não sentir a mesma adrenalina e ansiedade quando joga o GTA em seu formato original. Sentir-se familiarizado com os personagens que conduz no jogo é um sentimento importante para uma experiência proveitosa, que relata não sentir sem as modificações:

Jogar o GTA original, do modo como a produtora do jogo disponibiliza, não é a mesma coisa do que jogar com os mods. É bastante diferente quando você coloca um mod brasileiro, causa mais ansiedade de jogar, se quer jogar mais, e se quer ver mais mods sendo atualizados com moldes de nossa cultura. Essas modificações acabam por transformar o jogo em um game brasileiro que todos sonham.

Junto ao desenvolvedor, é possível visualizar adaptações de moldes culturais nacionais e regionais em jogos originais como um meio de expressão de projetos pessoais. Sonhos pessoais e visões de mundo motivam a processo de construção de mods. Fazer sonhos e perspectivas pertencerem a uma realidade compartilhada por comunidades de jogos é uma forma de vivenciá-las.

Destinatário Ausente

Outro representante da reprodução de parcela do cotidiano brasileiro em jogos é o game “Destinatário Ausente”. Este tem como protagonista o carteiro Gerson Pontes que, devidamente caracterizado com o uniforme de camisa amarela e azul e calça azul, deve realizar suas entregas por entre os percalços da distância e da incerteza da presença do destinatário no endereço indicado.

O criador do game é Leonardo Henrique, manauara de 21 anos e estudante de Engenharia de Materiais na UFAM (Universidade Federal do Amazonas). O desenvolvedor conta que desde criança mostrava interesse em criar jogos. Muito de sua experiência junto ao campo dos games se deu de modo autodidático, a partir da leitura de revistas especializadas e de material na internet.

A inspiração para a criação do jogo surgiu quando visualizou um meme publicado no Facebook em que Sam Bridges, personagem protagonista do jogo Death Stranding, aparecia vestindo o uniforme nacional dos correios. O criador do game diz que naquele momento surgiu a ideia de criar um “jogo meme” com esse contexto.

A relação entre Sam Bridges e Gerson Pontes é um dos elos que torna “Destinatário Ausente” uma paródia de um jogo internacionalmente famoso. Isso porque o protagonista de Death Stranding é um entregador em um cenário pós-apocalíptico que em sua rotina carrega encomendas de um ponto a outro.

No game brasileiro, quem tem a tarefa de entregar as encomendas em condições adversas é Gerson Pontes. Este representa parcialmente as vivências que muitos agentes postais lidam em seu cotidiano laboral que, mesmo sem encarar um cenário pós-apocalíptico, enfrentam alguns contratempos como trajetos distantes, falta de energia, climas adversos, caminhos desregulares.

Para apresentar Gerson Pontes ao mundo dos destinatários ausentes, Leonardo Henrique teve que se valer de novos recursos técnicos (como um novo computador), e atualizar seus conhecimentos sobre interpretação de imagens, medições de objetos em 3D, e relações de proporcionalidade de dimensões.

O desenvolvedor também contou com o consentimento de seu amigo para que este servisse de modelo para os traços físicos de Gerson Pontes. Os cabelos do herói mensageiro, no entanto, não são inspirados no amigo de Leonardo Henrique, mas em Sam Bridges — os personagens usam cabelo amarrado para trás, lembrando um estilo samurai.

O nome “Gerson Pontes” também mantém uma relação com o personagem do Death Stranding, já que a tradução de “bridges” para o português é “pontes”, mas o nome “Gerson” é uma decorrência de um meme envolvendo um carteiro chamado “Gerson Silva”.

Permeado por referências a memes, e criado com a intenção de ser um “jogo meme”, “Destinatário Ausente” dialoga com a realidade que muitos brasileiros compartilham, sendo eles carteiros ou não: a não entrega da encomenda.

Não é difícil encontrar vídeos e textos na internet sobre pessoas praguejando contra o serviço dos correios, alegando estarem em casa no dia em que o status “destinatário ausente” fora atualizado. Também é sensível a situação de um entregador que despende seu tempo e sua energia para, ao chegar no destino da entrega, perceber que não há ninguém para receber a encomenda.

Mais do que comunicar uma paródia criativa com o nivelamento de Sam Bridges e Gerson Pontes, o game também transmite certo nível de sensibilização sobre a experiência do ofício do carteiro. Isso pode ser percebido, especialmente, pelo esforço e pelo tempo que o personagem investe para chegar no endereço previsto. O jogador vivencia a passagem do tempo, a monotonia das caminhadas, e a frustração de chegar ao local e o destinatário se mostrar ausente.

Sobretudo, o game concilia elementos engraçados — suscitados pelo diálogo entre personagens de contextos diferentes, e pela percepção de analogias funcionais entre os protagonistas — com a experiência digital de parte do ofício de um carteiro. Com tais características, o jogo se propõe a promover o pertencimento a partir da incorporação de elementos familiares à produção de um game que não dialoga diretamente com uma realidade específica.

Os mods, ao partirem de uma fundação já pronta, permitem que pessoas como Allan e Rafael, mesmo que à revelia das fabricantes e detentoras dos direitos autorais dos jogos originais, se dediquem aos elementos subjetivos da experiência e impulsionam esse anseio de se ver representado ou ver elementos das suas realidades nos jogos, o que, seguramente, muitos jogadores brasileiros sentem. Leonardo alcança o mesmo objetivo por um caminho diferente, o da criação do zero de um jogo, inspirado por um título comercial estrangeiro.

Situar em um jogo a estética, as lógicas e regras de realidades que se tornam rotina para muitos, é um modo de fazer pertencer ao mundo seus gostos, hábitos, emoções, vontades. O que também é um modo de valorizar as próprias experiências, e não apenas incorporar mecanicamente personagens com pouca correspondência identitária. Modificar e criar para pertencer ao mundo.

Texto originalmente publicado no Manual do Usuário em 11/06/2019.

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Andressa Nunes Soilo

Social anthropologist researching digital piracy and streaming technology. E-mail: andressansoilo@outlook.com