Artistas independentes e as percepções sobre plataformas digitais de distribuição de música

Andressa Nunes Soilo
8 min readJan 13, 2020

Por Andressa Soilo

Photo by Getúlio Moraes on Unsplash

Realizar shows pela cidade, fazer uma performance semi-privada no quintal de casa, participar de shows de caridade, organizar turnês regionais, enviar versões de fitas demo para revistas/fanzines, ir a shows de outros artistas para um possível contato profissional, colar cartazes nos muros e nos postes das ruas, vender fitas cassetes e CD’s no porta-malas do carro ou em locais movimentados — como na saída de danceterias, e em postos de gasolina.

Estes eram alguns dos meios e estratégias que muitos artistas se utilizavam para tornar a música independente notada e consumida antes dos anos 2000. Uma das melhores chances de promoção era conseguir uma entrevista junto a um jornal, revista ou programa de TV.

Após a popularização de computadores domésticos, da conexão à internet e dos equipamentos de gravação, novos meios de promover o trabalho de artistas independentes rearranjaram as interações “face a face” de divulgação e venda de músicas — além de reconfigurarem as condições de negócios das grandes gravadoras. Com a disseminação de tecnologias digitais, os modos de produzir, ofertar e vender conteúdo musical foram atualizados.

Junto à internet, a música passou a ter a possibilidade de ser distribuída instantaneamente — através do formato MP3 no meio digital -, em ampla escala, e com custos mínimos. Ao artista foi possível divulgar seu trabalho em diversos canais (como fóruns e blogs), conhecer novos músicos e se relacionar de modo mais amplo com potenciais consumidores e fãs. Também lhe foi oportunizado montar seu próprio espaço/sua própria página junto às mídias sociais para a reprodução/venda/monetização de suas músicas.

A difusão da internet e de suas inúmeras e novas formas de se fazer conectar ao outro, de expressar identidades, de consumir formatos digitais de entretenimento, entre outras relações sociais mediadas por backbones, url’s e hardwares, foram produtivas para o surgimento de mídias sociais dedicadas ao campo musical.

Povoada por usuários das mais diversas localizações e interesses, a internet se torna, há duas décadas, um ambiente envolto por agremiações em que coletivos compartilham ideias e aspirações em comum.

Escrevo aqui sobre um desses grupos cibernéticos: o dos artistas independentes que buscam compartilhar suas produções, assim como expandir sua base de fãs. Mais especificamente abordo as percepções e as relações desses artistas com mídias sociais e serviços de música que destinam espaços para a promoção de conteúdo fora do circuito mainstream do entretenimento.

A música, o Myspace Music e o princípio da promoção profissional online

Criado no início dos anos 2000, o Myspace foi a primeira ferramenta online de grande expressão a auxiliar artistas independentes a promoverem seu trabalho, e a assistir aqueles que buscavam conhecer novos artistas e novos gêneros musicais.

Considerada por muitos a pioneira do formato “mídia social” — muito em razão de seu formato interativo que visa conectar usuários, e de sua popularidade junto ao público –, tal plataforma despertou a atenção de artistas que percebiam no Myspace um profícuo espaço não apenas de sociabilização, mas também de promoção de suas criações. Não por acaso.

Em janeiro de 2004, após seu primeiro mês online, o site atraiu mais de um milhão de pessoas, sendo a primeira mídia social a alcançar tal soma de usuários ativos em regularidade mensal. Em novembro do mesmo ano esse número subiu para 5 milhões de usuários. Em 2006 o Myspace foi considerado o site mais popular dos Estados Unidos: era responsável por quase 80% de todo o tráfego relacionado a redes sociais, sua base de usuários atingiu a notável marca de 100 milhões, e em 2007 possuía mais usuários do que o Facebook em diversos países.

Em meio ao crescente interesse de músicos ao formato interativo e popular da plataforma, surge o Myspace Music, um serviço mais estruturado e concentrado às necessidades daqueles que viviam o mundo da música — inclusive (e especialmente) artistas independentes. O formato digital dedicado aos interesses dos músicos foi uma das inovações mais atrativas da internet a quem buscava se promover artisticamente.

Em 2007, de acordo com estudo realizado por Dhar e Chang (2009), aproximadamente 80% dos músicos que lançavam um álbum possuíam um perfil no Myspace Music.

Os novos modelos de distribuição de música desencadeados pelo serviço eram também utilizados por gravadoras, que realizavam pré-álbuns em que os consumidores tinham a oportunidade de ouvir o conteúdo antes da data de lançamento — uma estratégia de “degustação”, e também uma manobra para tentar contornar (e se adaptar) o novo formato de consumo que o Napster, e demais programas de compartilhamento de arquivos, promovia.

Com configurações de rede social, o Myspace Music viabilizava a seus artistas o contato com fãs, e o acesso e/ou venda de suas músicas a um público potencialmente vasto a baixo custo. O aspecto interativo e social da mídia garantiu aos músicos espaço para o marketing profissional, possibilitando, também, a monetização através de publicidade e download.

O Myspace Music inaugurou potencialidades ao mercado musical independente: potencial de lucro, de ampla visibilidade, de amplo acesso ao trabalho independente, de colaborações profissionais, de (re)conhecimento de outros artistas, de expansão da criatividade, de expressões e produções de identidades, de comportamentos e estratégias de mercado.

A partir de 2008, questões burocráticas internas, a popularidade do Facebook e a emergência de outras plataformas dedicadas à música marcaram o início do declínio do Myspace. Mesmo com sua breve popularidade — apesar de pouco habitado, ainda se encontra ativo — o site deu aos adoradores da música novas oportunidades e métodos de se expressar, atualizando práticas e linguagens ao repertório da produção e circulação da música independente.

Artistas e suas percepções sobre serviços de distribuição de música independente

Na atualidade, as dinâmicas de divulgação da música independente permanecem, sobretudo, localizadas no campo online. Plataformas que, assim como o Myspace, dedicam espaço para a promoção de artistas protagonizam os meios estratégicos de publicidade por diversos músicos.

É claro que colar cartazes, distribuir flyers pelas ruas, e demais táticas de comunicar o trabalho “face a face” ainda são utilizadas, mas destaco aqui a relevância das plataformas digitais neste cenário, assim como algumas percepções de artistas sobre tais espaços.

Serviços como Soundcloud, Bandcamp, Spotify e Deezer são algumas das plataformas mais populares entre músicos independentes no Brasil. Junto a estes canais é possível enviar músicas e discografias que podem ser acessadas e compradas pelo público — viabilizando, por vezes, retorno financeiro.

Apesar das particularidades de integração artística que não agradam a todos os músicos — como a necessidade de inscrição junto a empresas de distribuição e/ou como os custos de assinaturas dos serviços — cada plataforma representa uma nova oportunidade de acessar o público. Por essa razão, a distribuição de produções independentes em dois ou mais serviços faz parte de uma estratégia de captação da atenção.

Tal distribuição pode ser gerida, também, por meio de ferramentas que realizam o upload de músicas em várias plataformas — conhecidas como “agregadores musicais”. A partir da adesão a um plano, o artista pode ter suas produções disponibilizadas em várias plataformas através de um serviço que concentra a difusão da música. Os mais populares agregadores são o Distrokid, o CD Baby e mesmo o Soundcloud que recentemente anunciou sua atuação como distribuidor.

Distribuir conteúdo a partir de uma única ferramenta faz parte de um processo de facilitação ao acesso ao entretenimento e de aproximação ao cliente proposto, sobretudo, pelas plataformas de streaming nos últimos anos. De acordo com Arthur da banda Mentecripta, a burocracia de alguns serviços o auxiliou na divulgação de sua música:

“Percebi que ao assinar com a administradora de direitos autorais online OneRPM, com o objetivo de disponibilizar minha produção no Spotify e no Deezer, minha música não foi somente para essas duas plataformas, e sim para diversas outras em todo mundo (eles dão a lista dos apps em cada continente que sua música estará disponível, por exemplo Apple Músic, Youtube Music, são mais de 15).”

Estar em todo o lugar junto às plataformas é um modo de se fazer presente artisticamente, de potencialmente acessar milhares de pessoas apreciadoras de música que habitam tais serviços, construir uma base de fãs, um modo de vida.

Em contato realizado junto a artistas independentes, ouvi de um músico que distribuir conteúdo junto a diferentes serviços é como traduzir um livro para outros países: cada serviço teria seu idioma próprio, e seria inteligente traduzir o livro para línguas populares, como inglês e mandarim.

O paralelo realizado pelo interlocutor, entre serviços e idiomas populares, é pertinente. Habitar os espaços de divulgação através de tais plataformas é uma estratégia interessante, no entanto, quando a habitação é limitada surge um imperativo latente no que diz respeito ao “onde” distribuir conteúdo. A resposta é: Spotify. Não por acaso, o serviço, além de ser um dos mais populares na atualidade também propicia uma maior interação com outras redes sociais populares, como Instagram e Tinder.

Renato Judz da banda Estive Raivoso relata que, apesar de utilizar o Soundcloud por 4 anos, percebeu uma ampliação de seu público após as 2 primeiras semanas em que disponibilizou sua produção junto ao Spotify. De acordo com o músico, sua base de fãs, geralmente limitada a amigos, se tornou mais heterogênea — não restrita ao círculo social habitual da banda — em razão da adesão a tal serviço de streaming.

Isso não significa que o artista independente que deposite seu trabalho no Spotify — ou em quaisquer outras plataformas — integrará a lista de pessoas mais ricas da Forbes no ano seguinte. Longe disso. Aliás, é muito mais provável que o retorno financeiro não seja expressivo. Contudo, como me aludiu um músico: “não usar o Spotify é como não colocar rodas em um carro: ele não avançará e, se avançar, você é uma força da natureza”.

Se você não é uma “força da natureza”, as plataformas atuarão muito mais como mediadoras de uma possibilidade do que como a possibilidade em si. Muitos artistas as percebem muito mais como um investimento do que uma ferramenta lucrativa imediata. Um investimento de marketing, uma ferramenta que consegue dar visibilidade e organizar o acesso do público à música — por exemplo, os serviços oferecem um destino online para que os fãs interajam com o conteúdo após um show.

Por fim, é possível identificar o potencial que as plataformas têm de atuar como propulsoras da promoção artística, remodelando as práticas do cenário alternativo de música. Mas, sobretudo, os serviços de distribuição de conteúdo atualizam as percepções sobre oportunidades e expectativas de quem atua neste campo. Transcendendo a noção de retorno financeiro — cada vez menos intrínseco à publicidade –, destaco como importante característica desses canais um senso renovado de possibilidades/esperança sobre o reconhecimento do trabalho independente.

Referências Dhar V.; Chang E. 2009. Does Chatter Matter? The Impact of User Generated Content on Music Sales. In.: Journal of Interactive Marketing, 23:4.

Texto originalmente reproduzido junto ao Musicoteca: < http://amusicoteca.com.br/artistas-independentes-e-as-percepcoes-sobre-plataformas-digitais-de-distribuicao-de-musica/>

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Andressa Nunes Soilo

Social anthropologist researching digital piracy and streaming technology. E-mail: andressansoilo@outlook.com